Cannabis medicinal como alternativa terapêutica
A relação entre cannabis medicinal e autismo tem ganhado destaque no cenário científico internacional. Desde a regulamentação da cannabis medicinal no Brasil, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2015, pesquisadores e médicos passaram, progressivamente, a observar potenciais benefícios dos canabinoides para diversas condições neurológicas. Entre elas, destacam-se a esclerose múltipla e o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
O TEA afeta aproximadamente 1% a 2% da população mundial. De acordo com estatísticas recentes dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), uma em cada 44 pessoas apresenta algum grau de autismo. Trata-se de um transtorno do neurodesenvolvimento que, por sua natureza complexa, manifesta-se de formas variadas. Por isso, cria-se um ‘espectro’ de sintomas, que pode incluir dificuldades na comunicação social, comportamentos repetitivos e interesses restritos.
Além dos sintomas primários, muitas pessoas com TEA enfrentam, ainda, desafios secundários, como ansiedade, insônia, irritabilidade e, em alguns casos, comportamentos autolesivos ou agressivos. Justamente nesses sintomas associados é que a cannabis medicinal tem demonstrado resultados promissores. Aliás, esses efeitos positivos são semelhantes aos já documentados em outras condições neurológicas, como a esclerose múltipla.
Entendendo a cannabis medicinal: Composição e mecanismos de ação
O que são canabinoides e como atuam no organismo?
A cannabis é uma planta originária da Ásia Central e Meridional, popularmente conhecida como maconha. Existem três principais espécies do gênero Cannabis: sativa, indica e ruderalis, sendo as duas primeiras as mais estudadas cientificamente. O potencial terapêutico da planta deriva principalmente de seus compostos ativos, os canabinoides.
Cientistas já identificaram aproximadamente 120 canabinoides na Cannabis sativa, mas dois se destacam nas pesquisas médicas: o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC). Estes compostos interagem com o sistema endocanabinoide humano, presente tanto no cérebro quanto em diversos outros órgãos, influenciando funções como humor, memória, dor e inflamação.
O sistema endocanabinoide desempenha um papel crucial na regulação neuronal e na plasticidade sináptica — processos que, por sua vez, podem estar alterados tanto na esclerose múltipla quanto no autismo”, explica a Dra. Juliana Bogado, médica especialista em canabinoides e coordenadora acadêmica da EndoPure Academy.
CBD vs. THC: Diferenças fundamentais para aplicações terapêuticas
Os dois principais canabinoides apresentam propriedades distintas que determinam suas aplicações médicas:
- CBD (Canabidiol): Não possui efeito psicoativo, apresenta propriedades ansiolíticas, anticonvulsivantes, anti-inflamatórias e neuroprotetoras. É frequentemente utilizado para reduzir ansiedade, convulsões e inflamação.
- THC (Tetraidrocanabinol): Conhecido pelo efeito psicoativo ou “euforizante”, possui propriedades analgésicas, estimulantes do apetite, anticonvulsivantes e, em doses controladas, pode ajudar no controle de comportamentos disruptivos.
“A principal diferença entre eles é o efeito euforizante: o THC é conhecido pela euforia consequente do uso recreativo da cannabis, enquanto o CBD não tem efeito euforizante”, esclarece Bogado. “Além disso, o CBD tem característica ansiolítica, enquanto o THC é ansiogênico; o CBD pode inibir o apetite, podendo ser usado no tratamento da obesidade, enquanto o THC tem efeito de aumentar o apetite, podendo ser utilizado em pacientes com transtornos como anorexia”, complementa.
Tipos de produtos canabinoides disponíveis no Brasil
Atualmente, o mercado brasileiro disponibiliza três categorias principais de produtos à base de cannabis medicinal:
- CBD Isolado: Contém exclusivamente canabidiol, sem outros canabinoides.
- Full Spectrum (Espectro Completo): Inclui CBD, THC e outros canabinoides em diferentes proporções, aproveitando o “efeito comitiva” onde os compostos atuam sinergicamente.
- Broad Spectrum (Amplo Espectro): Contém múltiplos canabinoides e terpenos da planta, exceto THC.
Nas farmácias brasileiras, pacientes com prescrição médica podem encontrar produtos de CBD isolado e formulações full spectrum, dependendo da necessidade terapêutica específica.
Regulamentação da cannabis medicinal no Brasil e no mundo
Marco regulatório internacional e reconhecimento científico
Em 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu oficialmente as propriedades terapêuticas da cannabis, reclassificando-a e, consequentemente, removendo-a da lista de substâncias consideradas especialmente perigosas. Assim, este marco representou um avanço significativo no reconhecimento global do potencial medicinal da planta.
Evidências científicas robustas sustentam a eficácia da cannabis medicinal para diversas condições neurológicas, incluindo esclerose múltipla, epilepsia, doença de Parkinson, doença de Alzheimer e dores crônicas. Além disso, a esclerose múltipla, em particular, foi uma das primeiras condições a ter medicamentos à base de cannabis aprovados internacionalmente.
Evolução da regulamentação no Brasil
No Brasil, a trajetória regulatória da cannabis medicinal inclui marcos importantes:
- 2015: A Anvisa aprovou a importação de produtos derivados de cannabis para fins terapêuticos e removeu o THC da lista de substâncias proibidas.
- 2019: Regulamentação da venda de produtos derivados de cannabis em farmácias brasileiras, mediante prescrição médica.
- 2023: O estado de São Paulo pioneiramente iniciou a distribuição gratuita de medicamentos à base de cannabis pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Atualmente, 24 unidades federativas brasileiras possuem leis em vigor ou em tramitação para garantir o fornecimento de medicamentos canabinoides pelo SUS, ampliando o acesso a pacientes com diversas condições, incluindo autismo e esclerose múltipla.
Cannabis medicinal e autismo: Mecanismos e evidências científicas
Como os canabinoides podem influenciar sintomas do TEA?
O sistema endocanabinoide está envolvido em processos neurológicos fundamentais, incluindo desenvolvimento cerebral, plasticidade sináptica, comportamento social e processamento sensorial — áreas que, frequentemente, são afetadas no TEA. Além disso, pesquisadores sugerem que disfunções nesse sistema podem contribuir para alguns sintomas do autismo.
A cannabis medicinal, ao interagir com receptores canabinoides (CB1 e CB2) presentes no sistema nervoso, pode modular neurotransmissores como serotonina, dopamina e GABA, potencialmente aliviando sintomas como:
- Ansiedade e estresse
- Comportamentos repetitivos
- Hiperatividade
- Irritabilidade e agressividade
- Distúrbios do sono
- Hipersensibilidade sensorial
“Muitos dos mecanismos que observamos na resposta à cannabis em pacientes com esclerose múltipla, como a neuromodulação e efeitos anti-inflamatórios, também parecem relevantes para o tratamento de sintomas associados ao TEA”, observa a Dra. Bogado.
Estudos clínicos e suas descobertas
Pesquisas recentes têm fornecido evidências promissoras sobre os benefícios potenciais da cannabis medicinal para pessoas com TEA:
Estudo da Progress in Neuro-Psychopharmacology (2018)
Uma revisão publicada na revista científica Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry analisou dados pré-clínicos e clínicos disponíveis sobre segurança e eficácia da cannabis medicinal em jovens com TEA. Os resultados indicaram:
- Melhora significativa na interação social
- Redução de sintomas de insônia
- Diminuição de manifestações de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade)
Os pesquisadores ressaltaram, entretanto, a necessidade de mais estudos clínicos controlados para confirmar estes achados preliminares.
Estudo da Nature (2019)
Uma pesquisa publicada na prestigiada revista Nature acompanhou 188 pacientes com TEA tratados com cannabis medicinal entre 2015 e 2017. Os resultados foram encorajadores:
- 28 pacientes (aproximadamente 15%) relataram melhora significativa nos sintomas centrais do autismo
- 60% dos participantes relataram melhora moderada a significativa nos sintomas associados
- Redução de crises de ansiedade em 47% dos casos
- Melhora dos problemas de comunicação em 29% dos pacientes
- Diminuição de comportamentos disruptivos em 33% dos casos
Os autores concluíram que a cannabis medicinal “parece ser uma opção bem tolerada, segura e eficaz para aliviar os sintomas associados ao TEA”.
Estudo Israelense (2021)
Um estudo conduzido em Israel com 82 participantes com TEA utilizando óleo de cannabis (30% CBD e 1,5% THC) por seis meses demonstrou:
- 30% dos participantes relataram melhora significativa na qualidade de vida
- 49% relataram melhora moderada
- Redução de comportamentos autolesivos e explosões de raiva
- Melhora no sono e concentração
Paralelos com a esclerose múltipla: Lições aprendidas
Os avanços no uso de cannabis medicinal para esclerose múltipla oferecem importantes paralelos para o tratamento do TEA. Isso porque a esclerose múltipla, uma condição neurológica autoimune, foi uma das primeiras a ter medicamentos canabinoides aprovados internacionalmente. Por exemplo, o medicamento Sativex® (nabiximols) é utilizado para tratar a espasticidade muscular.
Estudos sobre cannabis e esclerose múltipla demonstraram:
- Efeitos neuroprotetores dos canabinoides
- Redução de inflamação neuronal
- Modulação da resposta imunológica
- Alívio de espasticidade e dor neuropática
Estas descobertas, portanto, sugerem mecanismos similares que podem beneficiar pessoas com TEA. Isso é especialmente relevante considerando que tanto a esclerose múltipla quanto o autismo envolvem alterações na comunicação neuronal e, possivelmente, processos neuroinflamatórios.
Considerações clínicas para uso de cannabis no TEA

Quando considerar a cannabis medicinal como opção terapêutica?
O Dr. Erasmo Casella, neurologista infantil e membro da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, enfatiza que a cannabis medicinal deve ser considerada principalmente quando as abordagens convencionais não produzirem resultados satisfatórios:
“A cannabis medicinal só deve ser usada em casos em que medicações habituais para o tratamento de agressividade, irritabilidade e eventuais alterações de sono não trouxeram resultados eficazes,” afirma o especialista.
Esta abordagem de “segunda linha” é similar à adotada inicialmente para pacientes com esclerose múltipla, onde canabinoides eram prescritos após falha de terapias convencionais.
Personalização do tratamento: Qual formulação para cada caso?
A escolha do produto canabinoide mais adequado deve ser individualizada, considerando:
- Perfil de sintomas predominantes:
- Ansiedade e irritabilidade: Formulações ricas em CBD
- Comportamentos disruptivos graves: Formulações com baixas concentrações de THC podem ser consideradas
- Problemas de sono: Combinações específicas de CBD e THC
- Idade do paciente:
- Crianças geralmente iniciam com produtos de CBD isolado
- Adolescentes e adultos podem beneficiar-se de formulações full spectrum em casos específicos
- Comorbidades e medicações concomitantes:
- Interações medicamentosas devem ser cuidadosamente avaliadas
- Condições como epilepsia concomitante podem influenciar a escolha da formulação
“Cada pessoa com autismo apresenta um perfil único de sintomas e resposta a medicamentos. A personalização do tratamento com cannabis medicinal segue o mesmo princípio”, explica a Dra. Bogado.
Monitoramento e ajustes: Importância do acompanhamento médico
O acompanhamento médico regular é essencial para o sucesso da terapia canabinoide, permitindo:
- Avaliação sistemática da resposta ao tratamento
- Identificação precoce de efeitos adversos
- Ajustes graduais de dosagem
- Documentação da evolução clínica
Especialistas recomendam o uso de escalas validadas de avaliação comportamental antes e durante o tratamento para mensurar objetivamente os resultados.
Desafios e perspectivas futuras
Barreiras científicas e regulatórias a serem superadas
Apesar dos avanços, diversos desafios persistem no campo da cannabis medicinal para TEA:
- Limitações metodológicas nos estudos atuais:
- Amostras pequenas
- Heterogeneidade do TEA
- Poucos estudos controlados com placebo
- Variabilidade nas formulações e dosagens utilizadas
- Estigma e preconceito:
- Associação incorreta entre uso medicinal e recreativo
- Resistência de profissionais de saúde por desconhecimento
- Acesso e custo:
- Tratamentos ainda caros para muitas famílias
- Cobertura limitada por planos de saúde
Dr. Casella destaca: “O principal desafio a ser enfrentado é a realização de mais estudos científicos do tipo duplo-cego randomizado com evidências sólidas da eficácia e segurança da planta para os pacientes.”
Pesquisas em andamento e novas fronteiras
O campo da cannabis medicinal para autismo está em rápida evolução, com diversas pesquisas promissoras em andamento:
- Estudos clínicos de fase III:
- Diversos centros de pesquisa estão conduzindo estudos com metodologia rigorosa
- Foco em diferentes faixas etárias e perfis de TEA
- Desenvolvimento de canabinoides sintéticos específicos:
- Compostos direcionados para receptores específicos do sistema endocanabinoide
- Redução de efeitos adversos e maior especificidade terapêutica
- Biomarcadores de resposta:
- Identificação de fatores genéticos e bioquímicos que predizem resposta ao tratamento
- Medicina personalizada para otimizar resultados
- Estudos de neuroimagem:
- Investigação dos efeitos dos canabinoides na conectividade cerebral
- Compreensão dos mecanismos neurobiológicos subjacentes aos efeitos terapêuticos
Assim como ocorreu com a esclerose múltipla, onde a pesquisa com cannabis evoluiu de estudos preliminares para medicamentos aprovados internacionalmente, espera-se uma trajetória similar para o TEA, com evidências cada vez mais robustas e opções terapêuticas mais refinadas.
Perguntas frequentes sobre cannabis medicinal e autismo
A cannabis medicinal pode curar o autismo?
Não. A cannabis medicinal não cura o autismo. Isso porque o TEA é uma condição de neurodesenvolvimento sem cura conhecida. No entanto, a cannabis medicinal pode ajudar a gerenciar sintomas específicos associados ao autismo, como ansiedade, irritabilidade, problemas de sono e comportamentos repetitivos. Dessa forma, pode contribuir para a melhora da qualidade de vida.
Quais são os principais efeitos colaterais da cannabis medicinal em pessoas com autismo?
Os efeitos colaterais mais comuns incluem, inicialmente, sonolência, alterações de apetite, boca seca e, em alguns casos, alterações de humor. Além disso, produtos com maior concentração de THC podem provocar efeitos psicoativos indesejados. No entanto, a maioria dos efeitos adversos é leve e, com o tempo, tende a diminuir com ajustes adequados na dosagem.
Como obter cannabis medicinal legalmente no Brasil para tratamento do autismo?
No Brasil, primeiramente, é necessária uma prescrição médica em receituário especial. Além disso, o médico deve ser registrado no Conselho Regional de Medicina e seguir as normas estabelecidas pela Anvisa. A partir disso, o paciente pode adquirir os produtos em farmácias autorizadas ou, alternativamente, importar medicamentos registrados em outros países, mediante autorização prévia da Anvisa.
A cannabis medicinal é coberta pelos planos de saúde para tratamento de autismo?
Atualmente, a maioria dos planos de saúde no Brasil não oferece cobertura para medicamentos à base de cannabis. No entanto, há decisões judiciais favoráveis obrigando planos a cobrirem o tratamento em casos específicos. Alguns estados já fornecem medicamentos canabinoides pelo SUS para pacientes que atendam a critérios específicos.
Qual a diferença entre usar cannabis medicinal e maconha recreativa para tratar o autismo?
Em primeiro lugar, a cannabis medicinal possui composição padronizada, dosagem controlada e é prescrita por médicos para fins terapêuticos específicos. Por outro lado, a maconha recreativa apresenta composição variável, sem controle de qualidade, e seu uso para autotratamento é, além de perigoso, ilegal. Ademais, os produtos medicinais são desenvolvidos com o objetivo de maximizar os benefícios terapêuticos e minimizar os efeitos psicoativos.
A cannabis medicinal funciona para todos os casos de autismo?
Não. Como ocorre com qualquer tratamento, a resposta é individual. Estudos mostram que aproximadamente 30-60% das pessoas com TEA apresentam algum benefício, mas os resultados variam significativamente. Fatores genéticos, perfil de sintomas e comorbidades influenciam a resposta ao tratamento.
Conclusão: O futuro da cannabis medicinal no tratamento do autismo
O caminho da cannabis medicinal como opção terapêutica para pessoas com Transtorno do Espectro Autista mostra-se promissor, embora ainda em desenvolvimento. As evidências científicas atuais, embora preliminares, indicam potencial benefício para o manejo de sintomas específicos associados ao TEA, particularmente ansiedade, irritabilidade, comportamentos disruptivos e problemas de sono.
Assim como ocorreu com a esclerose múltipla, onde a cannabis medicinal evoluiu de tratamento experimental para opção terapêutica reconhecida, o campo do autismo pode seguir trajetória semelhante. A experiência acumulada com outras condições neurológicas, como a esclerose múltipla, oferece insights valiosos sobre mecanismos de ação, protocolos de tratamento e monitoramento de resultados.
É fundamental que pacientes, familiares e profissionais de saúde mantenham expectativas realistas: a cannabis medicinal não é uma cura para o autismo, mas pode representar uma ferramenta adicional no arsenal terapêutico para melhorar a qualidade de vida de pessoas no espectro autista.
O avanço da pesquisa científica, com estudos mais robustos e de maior escala, será determinante para estabelecer definitivamente o papel da cannabis medicinal no tratamento do TEA. Enquanto isso, a abordagem mais prudente continua sendo a prescrição individualizada, por profissionais capacitados, com monitoramento regular e como parte de um plano terapêutico abrangente que inclua intervenções comportamentais, educacionais e sociais.